BRC – Durante a sua sabatina no Senado, antes de assumir a Presidência do Banco Central do Brasil, o senhor declarou que “as cooperativas de crédito, por trazerem os cooperados para o centro das decisões, criam um ambiente para a troca de experiências, que promovem a consolidação do espírito empreendedor e de importantes conceitos financeiros”. Gostaríamos que comentasse a declaração e como vê o papel do cooperativismo financeiro hoje no cenário nacional.
As cooperativas de crédito possuem características peculiares, que as tornam distintas das demais instituições financeiras. Elas são constituídas pela livre associação de pessoas naturais e empresas, com interesses compartilhados. São instituições centradas nas pessoas, em que o cooperado é cliente e proprietário ao mesmo tempo. Com isso, elas tendem a oferecer serviços mais personalizados e seus resultados são destinados a seus associados e, também, revertidos de alguma forma à comunidade na qual atuam.
As cooperativas desempenham um papel importante na inclusão e na educação financeira dos seus cooperados, na medida em que elas proporcionam o acesso de pessoas com baixa disponibilidade de atendimento pelo sistema tradicional a produtos e serviços financeiros. A participação dos associados na gestão das cooperativas, por meio da participação nas assembleias, também contribui para a formação de uma consciência financeira nesses indivíduos.
Em relação ao cenário atual, estou convicto de que o cooperativismo tem um papel importante a cumprir para a retomada da economia. Ele promove a concorrência no sistema financeiro, o que contribui para a diminuição de taxas de juros para o tomador final, para o aumento da oferta de crédito e para a eficiência do Sistema Financeiro Nacional (SFN) como um todo.
Além disso, pelas características particulares da atuação das cooperativas de crédito, de captar recursos e conceder crédito no âmbito de um grupo delimitado, o crédito cooperativista costuma ter um comportamento diferente do conjunto do restante da economia, podendo apresentar um papel anticíclico relevante.
BRC – No meio da pandemia do novo coronavírus, as cooperativas de crédito vêm desempenhando um importante papel na concessão de crédito, renegociação de dívidas, alongamento de prazos para pagamentos de créditos concedidos e soluções com foco na educação financeira para seus cooperados. Como o senhor avalia esse diferencial de foco na função socioeconômica das sociedades cooperativas?
O cooperativismo tem crescentemente ganhado importância, e isso é verdadeiro também no período de crise. Em junho, pesquisa da Sebrae/FGV com empresas de pequeno porte (microempreendedores individuais e micro e pequenas empresas) mostrou a importância do cooperativismo na concessão de crédito nesse período de pandemia. Segundo a pesquisa, o Sicoob e o Sicredi foram sozinhos responsáveis por 16% do total de pedidos de empréstimos feitos em todo o sistema financeiro pelas empresas de pequeno porte. Mais significativo, ainda, é o dado que mostra que essas duas instituições foram aquelas que apresentaram a maior taxa de sucesso na obtenção de empréstimos dentre todas as instituições financeiras do País. Ou seja, essas duas instituições foram aquelas onde as empresas de pequeno porte tiveram a mais alta taxa de aprovação de pedidos de empréstimo (17% no Sicoob e 13% no Sicredi).
Mas o bom desempenho do cooperativismo não se limita ao período da pandemia. Ao longo dos últimos anos, o cooperativismo de crédito tem se destacado por sua contribuição à expansão do crédito no país. A participação das cooperativas no mercado aumentou bastante nesse período, beneficiando principalmente as micro, pequenas e médias empresas, além das pessoas físicas, com ênfase nos produtores rurais. Isso ocorre porque as cooperativas estão inseridas no dia-a-dia dos locais e regiões de atuação, conhecem a realidade de cada comunidade de perto. Com isso, conseguem avaliar melhor as necessidades, os potenciais e as oportunidades.
Além disso, conforme mencionei, a peculiaridade do modelo cooperativo, em que o cliente e usuário dos serviços financeiros é também o dono do negócio, leva a maior envolvimento e conhecimento da instituição em relação à comunidade em que atua.
BRC – Com relação ao Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Pronampe), os bancos cooperativos se habilitaram a participar do processo de concessão de crédito. De que maneira vem sendo conduzido esse processo e quais as expectativas do Bacen com relação a esta participação do segmento cooperativo?
De fato, os bancos cooperativos participaram ativamente do Pronampe. Inclusive, o Bancoob foi a primeira instituição financeira habilitada no Programa. Na primeira fase, em que o governo aportou R$ 15,9 bilhões e foram emprestados R$ 18,7 bilhões, os dois bancos cooperativos (Bancoob e Sicredi), em menos de uma semana, concederam R$ 1,9 bilhões, em mais de 31 mil operações, e esse número só não foi maior em função do esgotamento dos recursos do fundo garantidor.
Houve recentemente novo aporte do governo, no montante de R$ 12 bilhões. Com a contrapartida das instituições financeiras, será possível conceder empréstimos no montante de R$ 14,1 bilhões. Bancoob e Sicredi relataram ter uma demanda elevada para essa linha de crédito pelos seus cooperados, e têm inclusive um volume significativo de operações pré-aprovadas e já com a documentação pronta à espera desses novos recursos.
No sistema financeiro, as cooperativas de crédito direcionam, proporcionalmente às demais instituições, mais crédito para micro e pequenas empresas. Também, nesse mesmo sentido, decompondo o crescimento constante do número de cooperados nos últimos anos, vemos que o ritmo de crescimento da associação de pessoas jurídicas, principalmente de micro e pequenas empresas, é bem mais acentuado do que o de pessoas físicas, o que começa a mudar o próprio perfil da base de cooperados. Em 2019, o aumento de pessoas jurídicas associadas foi de 16,9%, e em 2018 o crescimento foi de 18,3%. Assim, é natural que os bancos cooperativos sejam um importante canal de distribuição da concessão de crédito por meio do Pronampe.
Além do Pronampe, outro bom exemplo do importante papel das cooperativas nos programas governamentais é o PESE. Além dos 5 maiores bancos e do Banrisul, somente o sistema cooperativo concedeu créditos ao amparo desse programa. No total, os bancos cooperativos concederam, até 30 de junho, R$ 170,7 milhões em financiamentos, alcançando mais de 4.300 empresas e mais de 74 mil empregados.
BRC – Como avalia o desempenho do cooperativismo financeiro desde o início de sua gestão no Bacen? Quais são as perspectivas para este segmento no atual cenário do Sistema Financeiro Nacional?
O Sistema Nacional de Crédito Cooperativo (SNCC) é visto como importante vetor para melhorar a competitividade e aumentar a inclusão e a transparência do SFN. Nesse sentido, diversas ações têm sido tomadas pelo Banco Central, em conjunto com os representantes do cooperativismo de crédito nacional, com o objetivo de fortalecer o setor.
A partir do início de 2019, com o lançamento da Agenda BC#, o cooperativismo de crédito tem sido um dos temas centrais da agenda do BC no que se refere à busca pela redução do custo de crédito e pelo ganho de eficiência no SFN. Para isso, o BC tem implementado diversas ações com o objetivo de fomentar os negócios e promover melhorias na governança e na organização sistêmica. Além das ações de modernização do marco legal, que ainda estão em andamento, o Banco Central também tem adotado medidas para permitir que as cooperativas tenham acesso a outras linhas de captação, o que permitiu ao setor ampliar o seu campo de atuação.
Por exemplo, foi permitido às cooperativas novas formas de captação por meio de acesso à poupança. A Resolução 4.716, de abril de 2019, permitiu que as cooperativas singulares de crédito possam captar poupança rural, o que deve aumentar oferta de crédito para o setor agrícola nos próximos anos. Além disso, a Resolução 4.763, de novembro de 2019, autorizou as cooperativas de crédito a também captarem depósitos de poupança no âmbito do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE). Além da poupança, outros exemplos de inovações que permitiram ampliar as formas de captação das cooperativas são as letras financeiras e a letra imobiliária garantida.
Como resultado das ações da Agenda BC#, o que temos visto é o crescimento da base de cooperados e de depósitos de forma sustentada, bem como a manutenção da concessão de crédito em viés positivo, confirmando a evolução do sistema cooperativista no Brasil.
Para o futuro, o Banco Central vê como desafios para o setor: o aumento da participação do crédito tomado pelos cooperados no próprio SNCC; o aumento da participação das cooperativas no crédito concedido no SFN; o aumento da participação de cooperados de faixas de rendas mais baixas; e o aumento da presença de cooperados nas regiões Norte e Nordeste.
BRC – Em sua participação numa audiência pública, em junho, na comissão mista que acompanha o enfrentamento ao coronavírus no Congresso Nacional, o senhor mostrou a evolução dos financiamentos realizados no Brasil nas últimas semanas e afirmou que a percepção das empresas brasileiras de que o crédito bancário está mais escasso e caro está errada, e que, ao contrário, cresceu e está com juros mais baixos neste ano, sobretudo nos bancos privados. O senhor poderia comentar essa afirmação e um traçar um paralelo com o cooperativismo de crédito neste cenário?
Desde o início da pandemia, o Banco Central vem adotando uma série de medidas fundamentais para promover o bom funcionamento do mercado, sem abrir mão da solidez e da estabilidade do SFN.
As medidas foram bem sucedidas e, ao contrário do que se poderia esperar, o crédito continuou crescendo durante a pandemia. Como salientei na audiência, foram as instituições privadas, e não os bancos públicos, que puxaram esse crescimento. Assim, o crédito cresceu e as taxas de juros caíram no período da pandemia. Por exemplo, a taxa média de juros das operações de crédito com recursos livres para pessoas jurídicas caiu de 17% a.a., em fevereiro desse ano, para 12,3% a.a., em julho. No mesmo período, para pessoas físicas, essa taxa média de juros passou de 46,8% a.a. para 39,9% a.a.
No caso das concessões de crédito, se considerarmos as concessões a partir da 11ª semana do ano, período que corresponde ao início da adoção de medidas para combate à pandemia, o aumento observado em 2020 frente a igual período de 2019 é de 3,5% para as pessoas físicas e de 19,1% para as pessoas jurídicas.
Importante ressaltar que o crédito aumentou não apenas para grandes empresas, mas também para as PMEs e microempresas. Se compararmos o saldo da carteira de crédito do sistema financeiro para grandes empresas no mês de junho de 2020 com o saldo no mesmo mês do ano passado, veremos um aumento de 11,2%. Para pequenas e micro empresas, o saldo da carteira de crédito nessa mesma comparação cresceu 16,4% e 20,2%, respectivamente.
Especificamente em relação ao sistema cooperativo, na pandemia as cooperativas concederam R$ 87,5 bilhões de crédito, entre novos empréstimos e renovações para pessoas físicas e jurídicas. Além disso, prorrogaram parcelas de empréstimos que totalizam R$ 30,9 bilhões.
Conforme já mencionei, as cooperativas são especialmente importantes para empresas de pequeno porte e micro empresas. Na crise atual, as operações de crédito das cooperativas para esse segmento totalizaram R$ 36,7 bilhões, entre novos empréstimos, renovações e postergação de parcelas. Esse total equivale a mais de 30% do total de operações de crédito das cooperativas.
BRC – Recentemente, o senhor participou da entrega ao presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, de Projeto de Lei Complementar (PLP 27/2020) que propõe aprimoramentos de gestão e governança para o Cooperativismo de Crédito. Este documento foi discutido entre sua equipe e a Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB), levando em consideração o desejo do Banco Central de modernizar o sistema financeiro nacional. Como está o andamento deste processo e o que se pode esperar do trâmite no Congresso Nacional?
Já se passaram mais de 10 anos, desde a instituição, pela Lei Complementar 130, de abril de 2009, do Sistema Nacional de Crédito Cooperativo (SNCC). Nesse período, o SFN vem passando por uma grande transformação. Exemplos dessas mudanças são o surgimento de novos modelos de negócios e instituições como as fintechs; novas formas de interação entre o tomador de serviços financeiros e as instituições financeiras; e o aparecimento de novos produtos. Nesse contexto, é fundamental promover uma revisão da Lei Complementar nº 130 para que o cooperativismo continue crescendo e promovendo o desenvolvimento da nossa economia.
Por essa razão, a atualização da Lei Complementar nº 130 foi incluída como uma das ações da agenda estratégica do Banco Central para o sistema financeiro, a Agenda BC#. Em 10.3.2020, foi apresentado no Congresso Nacional o PLP nº 27/2020, cujo texto contempla ampla discussão entre o Banco Central e o Sistema Nacional de Crédito Cooperativo (SNCC). O PLP contempla novas disposições visando a modernização do SNCC sob três vertentes estratégicas: fomento de atividades e negócios; aprimoramento da organização sistêmica e aumento da eficiência do segmento; e aprimoramento de gestão e governança.
Entre as diversas medidas propostas no PLP podemos citar: o empréstimo sindicalizado; a possiblidade de contratação de conselheiro de administração independente; assembleias gerais virtuais; e a autorização para a realização de campanhas promocionais visando a atração de novos associados. A expectativa é que a proposta permita que o sistema cooperativo se modernize e torne-se ainda mais eficiente.
Em relação à sua tramitação, o Banco Central apoia o projeto na forma apresentada na Câmara dos Deputados, porém não comenta sobre o andamento de propostas legislativas no Congresso Nacional.
BRC – Fique à vontade para tecer comentários adicionais que julgar relevantes para o público cooperativo.
O Banco Central tem envidado importantes esforços objetivando a continuidade do desenvolvimento do setor cooperativo no Brasil, tendo em conta a grande relevância do setor para o sistema financeiro e para o país.
No SFN, o cooperativismo tem desempenhado um papel cada vez maior no aumento da competitividade em diversas atividades, tais como: carteiras de crédito rural; empréstimos para pessoas físicas; e empréstimo de capital de giro para micro e pequenas empresas, para as quais já se apresenta como uma das principais fontes de financiamento.
O setor cooperativista se destaca também por ter um modelo de negócio focado na proximidade com os associados, com uma presença massiva no interior do país. Ele possibilita o acesso a crédito em áreas em que historicamente há uma baixa disponibilidade de atendimento pelo sistema tradicional. Uma das consequências dessa capilaridade do sistema é que o cooperativismo de crédito tem sido muito importante na promoção da inclusão financeira, além de possibilitar o reinvestimento da poupança local na própria comunidade.
Para finalizar, gostaria de ressaltar que o crescimento do setor cooperativista é resultado de um esforço conjunto e que contamos com os dirigentes do segmento nesse processo de busca por novos avanços significativos e por um crescimento substancial desse setor no nosso país.