Em meio à profusão de informações sobre aspectos de segurança jurídica e responsabilidade quanto à realização ou não das assembleias gerais ordinárias, assim como a forma de compatibilizar as cautelas de saúde pública com a obrigatoriedade de realização desses atos na forma e prazo da legislação, o portal BR Cooperativo ouviu um especialista em Direito Cooperativo para esclarecer as melhores práticas diante da inusitada situação.
Entrevistamos o advogado e professor Ronaldo Gaudio, que é presidente da Comissão Nacional de Cooperativismo do Conselho Federal da OAB; presidente do Instituto Brasileiro de Estudos em Cooperativismo (Ibecoop) e presidente da Comissão Especial de Direito Cooperativo da OAB/RJ. Gaudio é mestre em Direito Econômico e Desenvolvimento, na linha de pesquisa Desenvolvimento, Regulação, Concorrência e Inovação, com MBA em Business Law pela FGV; professor convidado da Fundação Getúlio Vargas; coordenador da Coleção Direito e Cooperativismo, da Editora Juruá; diretor executivo da Asociación Ibereomaricana de Derecho Cooperativo (AIDCMESS); assessor jurídico do Sistema OCB/RJ; membro da Asociación Internacional de Derecho Cooperativo (AIDC); revisor da Revista Científica do Centro Internacional de Investigación y Información sobre la Economía Pública, Social y Cooperativa (CIRIEC-Espanha); pesquisador do CIRIEC-Brasil; e membro do Conselho Consultivo do International Journal of Cooperative Law.
Em sua avaliação, Ronaldo Gaudio destaca que o primeiro pressuposto é reconhecer a condição de pandemia de coronavírus, situação já declarada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e que servirá como legítima justificativa para fundamentar as decisões dos administradores de cooperativas.
Em segundo lugar, caso o ente federativo (estado, município ou distrito federal) já tenha exercido sua competência para restringir a realização de atos de aglomeração de pessoas, tais normas podem e devem ser utilizadas para fundamentar a legalidade da postergação da realização das Assembleias. Se houver prazo de restrição, este deve ser observado, assim como monitoradas as eventuais prorrogações realizadas. A despeito dos prazos estabelecidos nas diferentes leis federais de regência das sociedades cooperativas para realização de AGOs, o Direito contempla tais tipos de situação, conferindo legalidade a realização de assembleias extemporâneas, sejam quais forem as suas pautas.
“Nesse contexto”, frisa Gaudio, “é importante lembrar que tais atos societários serão levados a registro nas Juntas Comerciais dos estados e que, sendo órgão vinculado à Administração Pública dos respectivos estados, deverão observar e apreciar a legalidade do ato realizado de acordo também com a legislação estadual.”
O especialista lembra que não há conflito hierárquico entre a legislação federal e norma estadual editada no exercício da competência do governador do Estado na gestão de imperativo de saúde pública no território deste ente federativo. Ou seja, a o respeito à norma estadual também justifica a realização do ato societário posterior ao prazo ordinário para realização previsto na lei federal.
“Pelo contrário, a tentativa de registro das atas junto ao órgão governamental com competência estadual poderá constituir prova de desobediência à legislação especial que disponha sobre as restrições durante o período de combate ao COVID-19. Não se sabe a postura que será adotada pela Junta Comercial que pode, a rigor, incluir desde a negativa de registro dos atos realizados no período da proibição até providências eventuais de comunicação do descumprimento da lei a outros órgãos com atribuição fiscalizatória específica no âmbito do Estado”, aponta Gaudio.
Ele prossegue informando que inúmeros estados já produziram normas restringindo quaisquer atividades que envolvam a aglomeração de pessoas. “O ato de gestão contrário à lei, além de constituir causa ordinária de responsabilização pessoal de dirigentes, expõe a risco o quadro social e, geralmente, a depender da localidade e volume de participantes, toda a comunidade do entorno”, enfatiza.
Segundo o entrevistado, é importante acompanhar e utilizar como fundamento os pronunciamentos da Organização das Cooperativas do Brasileiras (OCB), na medida em que, de acordo com a Lei Federal n° 5.764/1971, a entidade reveste-se da atribuição de órgão técnico-consultivo do Governo (art. 105). A utilização dos argumentos da OCB pelas cooperativas constitui uma importante estratégia para validar a posição dos dirigentes perante dos órgãos de registro.
As normas mais recentes têm disposto sobre a obrigação de não fazer atos que possam resultar em aglomerações, estabelecendo prazo para tanto. Nesse contexto, deve ser observada a regra de contagem de prazos disposta no artigo 8°, §1° da Lei Complementar n° 95/1998, que é diferente das normas processuais.
“Na ausência de norma estadual, municipal e regulatórias específicas, insistimos, ainda assim o Direito contempla a solução de postergação em tais hipóteses de imperativos de saúde pública. Tenha-se em conta, além das declarações oficiais da OMS, a Portaria n° 188, de 03/02/2020 do Ministério da Saúde e o Decreto Federal n° 10.212, de 30/01/2020”, afirma Gaudio.
Nesse contexto, Ronaldo Gaudio elenca algumas ações que julga extremamente recomendáveis:
1) Que, independente de suas pautas, sejam adiadas as Assembleias Gerais Ordinárias convocadas para realização dentro de prazos restritos por outras normas específicas para combate ao COVID-19 sejam respeitados;
2) Que o adiamento de ato já convocado seja feito igualmente através de edital e demais veículos de comunicação utilizados;
3) Que os novos instrumentos convocatórios façam menção à observância dos decretos estaduais como justificativa para a medida de adiamento;
4) Que conste a mesma justificativa nas eventuais convocações de assembleias a serem realizadas após o prazo de três meses posteriores ao fim de exercício social;
5) Que tal excepcionalidade, fundada na legislação estadual, municipal ou distrital porventura vigente, assim como outros fundamentos mencionados, conste também dos registros iniciais das atas das assembleias e deliberações formais das diretorias e conselhos de administração;
6) Que as pautas de AGO a serem cumpridas após o prazo do artigo 44 da Lei Geral de Cooperativas, em razão do decreto ser objeto de convocação de Assembleia Geral Extraordinária (AGE);
7) Que, em caso de quaisquer dúvidas adicionais ou casos concretos específicos, sejam objeto de consulta prévia a assessoria jurídica;
8) Que seja observada eventual prorrogação do prazo de restrição prevista nos decretos;
9) Que, para evitar aglomerações de pessoas, os eventuais adiamentos sejam comunicados previamente, ao invés de se comunicar aos cooperados apenas no ato da assembleia a ser adiada;
10) As restrições devem ser observadas também para outras reuniões, encontros ou pré-assembleias que possam produzir aglomeração de pessoas.
“Do ponto de vista legal e de forma objetiva, compreendemos que os dirigentes de cooperativas não devem assumir o risco de configuração de ato ilegal em razão da data de sua realização em período vedado pela legislação estadual”, defende Gaudio, complementando que, do ponto de vista de saúde pública, independente da data de realização após o prazo de restrição do decreto estadual, deve-se redobrar a atenção no caso das assembleias que, com base na lei 12.690/12, devam ter como quórum mínimo 50 sócios.
O advogado aponta ainda que maior atenção e cautela devem ser tomadas no caso de cooperativas cuja atividade envolva o contato direto do quadro de cooperados com clientes, especialmente consultórios, estabelecimentos residenciais e, sobretudo, clientes idosos.
“Em todas as situações, recomendamos que as assembleias porventura ainda assim realizadas antes ou depois de tal prazo ocorram em espaço amplo, com boa ventilação e que sejam disponibilizados recursos como álcool para limpeza das mãos”, ressalta.
A realização de assembleia no período de vedação pode gerar questionamento de nulidade dos atos por parte dos cooperados ausentes em virtude do cumprimento da legislação, que podem culminar em medidas de anulação da assembleia, no que comenta Gaudio: “Compreendemos que, por força de comando legal, a necessidade de não cumprimento aos prazos das leis federais de regência das sociedades cooperativas estão plenamente justificados para todos os fins de direito, inclusive para a representação da pessoa jurídica junto às instituições financeiras, bem como para cumprimento das normas de regulação, permanecendo os integrantes dos cargos eletivos no exercício dos mesmos, ainda que de forma extemporânea e transitória, permanecendo”, aponta.
Ainda segundo ele, devem ser monitorados eventuais pronunciamentos por parte das autoridades regulatórias, em especial da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), do Conselho Monetário Nacional (CMN) e do Banco Central do Brasil (Bacen). No silêncio de tais órgãos, entre outros, deve ser mantida a fundamentada e prudente decisão de não realização do ato enquanto normas específicas sobre combate ao CONVID-91 estiverem vigentes ou enquanto perdurar o cenário de risco grave à saúde da coletividade.
“Estimamos que a tendência seja a postergação inclusive das assembleias do mês de abril, mormente para as cooperativas de crédito e que, nesse sentido, tendam a ocorrerem os pronunciamentos dos sistemas de crédito cooperativo e da autoridade supervisora”, finaliza Ronaldo Gaudio.